quinta-feira, 5 de maio de 2016

Brasil: o golpe do impeachment

 O golpe do impeachment 

 Por Gilberto Bercovici
Caros Amigos

NOS ÚLTIMOS dias, a disputa entre aqueles que são favoráveis ou contrários ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff também se deu na qualificação ou não desse processo como um golpe de Estado. Vários juristas, ministros e ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) vieram a público defender a argumentação cabotina de que o processo de impeachment está previsto na Constituição, portanto, não poderia ser um golpe de Estado. A realidade é um pouco mais complexa, no entanto, do que os falsos sofismas com que os opositores ao atual governo no meio jurídico pretendem confundir a opinião pública.


O impeachment nada mais é que um processo de apuração de responsabilidade política do Presidente da República. Não se trata de um instrumento passível de ser utilizado em virtude da baixa popularidade de um governo ou da sua falta de apoio parlamentar. Portanto, não se pode confundir oimpeachment com o voto de desconfiança, existente nos países de sistema parlamentarista, ou com outros institutos como o recall de cargos eletivos, presente em alguns estados norte-americanos, como a Califórnia, ou como o referendo revogatório de mandato, previsto no artigo 72 da Constituição da Venezuela de 1999.


Por se tratar de um processo de apuração de responsabilidade política do Chefe do Executivo, oimpeachment deve observar rigorosamente as exigências determinadas no texto da Constituição, no caso brasileiro, as previstas particularmente nos artigos 85 e 86 do texto constitucional de 1988.


Os crimes de responsabilidade são atos do Presidente da República que atentem contra a Constitui-ção, devendo ser previamente definidos em lei especial federal. Não são ilícitos penais propriamente ditos, mas atos cuja sanção é, em princípio, política, não penal. Isto não impede que a legislação preveja, em certos casos, a dupla sanção, implicando em um processo penal paralelamente ao processo político. A função do impeachment não é punir indivíduos, mas proteger o País de danos ou ameaças por parte de um governante que abusa do seu poder ou subverte a Constituição. A Constituição brasileira de 1988 assim estabelece, em seu artigo 85: “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do País; V – a probidade na administração; VI – a lei orçamentária; VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento”.


Este conjunto de crimes de responsabilidade foi regulamentado pela Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Todas as condutas listadas pelo artigo 85 da Constituição de 1988 e pela Lei nº 1.079/1950 são atos funcionais de responsabilidade do Presidente da República em virtude de suas competências e prerrogativas constitucionais de chefe de Estado e de governo. Ou seja, o Presidente da República, no exercício do cargo, pode incorrer em crime de responsabilidade se afrontar a ordem constitucional vigente em vários de seus aspectos, definidos pelo artigo 85 da Constituição e pela Lei nº 1.079/1950. Não são situações que comportam a omissão ou a culpa, mas a atuação deliberada (e dolosa) do Chefe do Poder Executivo em contraposição direta à Constituição da República. Não por acaso, o artigo 85 da Constituição explicitamente menciona que são crimes de responsabilidade do Presidente da República determinados “atos” que atentem contra a Constituição. Não se trata de omissão ou inação, mas de ação deliberada do Chefe do Executivo.


O artigo 86, §4º da Constituição de 1988 determina que os atos que caracterizam o crime de responsabilidade devem ser praticados durante o mandato presidencial, no exercício do cargo. Ou seja, o Presidente da República não pode ser réu de um processo de impeachment motivado por atos estranhos à função presidencial ou ocorridos fora do seu mandato. A determinação do artigo 86, §4º da Constituição pertence ao texto original, que não previa a possibilidade de reeleição para os cargos do Poder Executivo. A Emenda Constitucional nº 16, de 4 de junho de 1997, introduziu a reeleição para um único período subsequente para os detentores de cargos de Chefe do Executivo. No entanto, a possibilidade de reeleição não eliminou o fato de a Constituição prever, em seu artigo 82, que o mandato presidencial dura quatro anos.


Ao ser reeleito, o Presidente da República inicia um novo mandato de quatro anos. O fato de poder exercer a função por oito anos não transforma este período em um mandato único. Pelo contrário, a Constituição expressamente afirma no artigo 82 que o mandato é de quatro anos e, caso reeleito, o Presidente inicia um novo mandato. São mandatos distintos de quatro anos cada. Se não fosse assim, não haveria necessidade de uma nova eleição presidencial, de uma nova posse ou de confirmação e nomeação de novos Ministros no momento da nova posse. Deste modo, o Presidente da República não pode responder por eventuais atos cometidos em mandatos anteriores, mesmo que imediatamente anterior ao seu presente mandato, conforme determina o artigo 86, §4º da Constituição de 1988. O artigo 15 da Lei nº 1.079/1950 (“A denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo”) só pode ser interpretado de acordo com o disposto na Constituição, ou seja, a eventual denúncia só pode ser recebida durante o mandato presidencial a que ela se refere.

Qualquer outra interpretação levaria ao paroxismo de interpretarmos a Constituição segundo a lei, e não a lei conforme a Constituição.


Compete ao Tribunal de Contas da União (TCU) ser órgão auxiliar do Congresso Nacional no controle externo da atuação contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e entes da Administração Direta e Indireta (artigos 70 e 71 da Constituição de 1988). O Tribunal de Contas da União, assim, aprecia as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República (artigo 71, I), mas não é o órgão constitucionalmente competente para julgar essas contas. Compete exclusivamente ao Congresso Nacional o poder de julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República (artigo 49, IX da Constituição). Em suma, no que diz respeito ao julgamento das contas do Presidente da República, segundo o texto constitucional de 1988, a competência é exclusiva do Congresso Nacional. Não cabe a um órgão auxiliar, o Tribunal de Contas da União, julgar as contas da Presidência. Sua função é analisar essas contas e emitir um parecer para que o Congresso Nacional possa utilizar como eventual fundamento de sua decisão sobre as contas presidenciais.


Um parecer do Tribunal de Contas da União, rejeitando ou aprovando as contas anuais da Presidência da República, nada mais é que um documento elaborado por uma assessoria, em princípio, técnica. Ele só tem efeitos jurídicos se for aprovado pelo Congresso Nacional no exercício de sua competência constitucional exclusiva de julgamento das contas presidenciais. A decisão sobre as contas do Presidente da República cabe tão somente ao Congresso Nacional, cuja decisão não está vinculada ao parecer do Tribunal de Contas da União. O Congresso Nacional pode acatar ou rejeitar o parecer do Tribunal de Contas da União, total ou parcialmente. A Constitui-ção não determina a necessidade de quórum qualificado para a apreciação das contas presidenciais pelos membros do Congresso Nacional, o que deve ser feito, portanto, por maioria de votos, com a presença da maioria absoluta dos congressistas (artigo 47). A eventual rejeição das contas presidenciais pelo Congresso Nacional não configura crime de responsabilidade. São duas decisões distintas. A aprovação ou rejeição das contas do Presidente da República ocorre por maioria simples de votos. Se a rejeição das contas implicasse necessariamente em crime de responsabilidade do Presidente da República, haveria a necessidade de ser decidida por quórum de dois terços, como determina o artigo 86, caput da Constituição: “Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”.


Aliás, esta determinação do quórum de dois terços da Câmara dos Deputados para admitir a acusação contra o Presidente da República por crime de responsabilidade não pode ser deturpada, sob pena de violação do devido processo legislativo. Uma eventual decisão do Presidente da Câmara pelo arquivamento de uma denúncia de crime de responsabilidade do Presidente da República que fosse submetida a recurso perante o Plenário da Câmara dos Deputados só pode ser revertida pelo mesmo quórum qualificado exigido pelo artigo 86, caput da Constituição. A utilização de qualquer outro quórum, como a maioria simples, configurará verdadeira fraude à Constituição ou até mesmo uma violação do texto constitucional.


O fundamento da República brasileira é a soberania popular, conforme enuncia expressamente o artigo 1º, parágrafo único da Constituição de 1988. A legitimidade popular é a base de todos os que exercem mandato político no Brasil, inclusive o Presidente da República. Qualquer tentativa de deslegitimação da consagração eleitoral nas urnas deve ser vista com extrema cautela, sob risco de instrumentalizarmos as instituições republicanas às paixões partidárias do momento.

O fato de um governo ser impopular ou de não conseguir uma maioria parlamentar de apoio às suas políticas não justifica, necessariamente, a abertura de um processo deimpeachment. O respeito à vontade das urnas é essencial em qualquer Estado Democrático de Direito. O processo deimpeachment deve ser sempre o último recurso, um poder a ser exercido com extrema cautela em casos extremos de comprovada violação da Constituição, e deve ter o apoio majoritário da sociedade, não apenas de uma eventual maioria parlamentar exasperada ou manipulada por interesses econômicos e políticos contrariados com a preservação da estabilidade das instituições democráticas no Brasil.


O processo de impeachment é um processo político, mas depende de sólida fundamentação jurídica. Estamos vivenciando no Brasil o que autores como Paulo Bonavides denominam de “golpe de Estado institucional”, ou seja, o regime mantém as aparências democráticas, mas as instituições mudam em sua essência, promovendo a derrubada da Constituição de 1988 para a implementação das políticas econômicas neoliberais, anunciadas no programa denominado “Uma Ponte para o Futuro” pelo grupo ligado ao Vice-Presidente Michel Temer.


Não necessitamos de sofismas ou de exercícios retóricos para disfarçar a realidade. Impeachment sem fundamento jurídico nada mais é do que um golpe de Estado. Um golpe patrocinado por parcela do Poder Legislativo, o que não lhe confere legitimidade alguma. Não interessa de onde se origina, podendo ser proveniente do Poder Legislativo, de um tribunal, palácio ou quartel, tampouco interessa a denominação que se queira dar, a natureza das coisas não muda: golpe é golpe.

GILBERTO BERCOVICI É PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.

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