terça-feira, 23 de julho de 2013

GEOGRAFIAS DA TRAGÉDIA

Mesmo ainda sob o efeito algo paralisante da tragédia do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e perplexo diante da evolução dos acontecimentos nesses dias, resolvi escrever este texto – como uma forma muito particular, talvez, de exorcizar o drama em que me vi involuntariamente envolvido e que pareceu deixar-me “sem armas” para qualquer ação e/ou entendimento.
Nos primeiros dias, depois de várias tentativas sem sucesso de voltar a me concentrar no trabalho, a ler os textos que precisava, a preparar aulas, pensei que o que poderia fazer era enfrentar de fato a gravidade do episódio e tentar repensá-lo à luz (se é que se pode falar em “luz” em meio a tudo isso) de uma reflexão geográfica, que é aquela em que me sinto mais à vontade e em que há alguma possibilidade de, no seu âmbito, encontrar algumas respostas – ou, no mínimo, abrir novas questões.

Existe alguma “geograficidade” em todo esse absurdo? Sim, como nas Torres Gêmeas, nos atentados de Londres, nas escolas de Connecticut ou Realengo ou em outras tragédias não premeditadas, a geografia recheia esses eventos de tal forma que, às vezes, de tão banal, passamos ao largo e a ignoramos. Fica realmente difícil falar agora, no pulsar mais forte dos acontecimentos, envolvidos pela emoção, em “reflexão” ou “conceitos”. Mas, ainda que como uma forma de superar o emocional que nos domina, pensar e refletir com as “armas” conceituais de que dispomos pode ser uma forma de reler os fatos e dar-lhes algum sopro de “razão”.


Primeiramente, gostaria de falar um pouco da cidade. Santa Maria faz parte da multiterritorialidade que compõe a minha vida. Retorno a ela pelo menos três vezes ao ano, e lá estão meu pai (minha mãe faleceu há 3 anos), uma irmã e três sobrinhos, além de vários primos e tios espalhados pelas cidadezinhas vizinhas. Não há como me separar daquele espaço. Ele participa de mim com imagens fortes que se densificam na história, e cada vez que vejo a cidade e suas mudanças parece que é um pedaço de mim que, junto, se transforma. É verdade, eu me transformo com a região de Santa Maria na memória, como se carregasse aquele espaço em retratos de semestre em semestre, ou de ano em ano. Como não se trata de um percurso contínuo, cotidiano, algumas marcas parecem que nunca cicatrizam, nem se somam, mas adulteram pedaços e fragmentam a minha trajetória. Mas, seja como for, somando ou subtraindo, Santa Maria e seus traços estão em mim e deles

nunca me desfaço.

Quando, então, ligo a televisão na BBC num domingo cedo, “para não perder meu  inglês”, como digo, e me deparo com um mapa do Brasil e apenas a cidade de
Santa Maria assinalada, estremeço. Não acredito. Nunca Santa Maria teria o “direito”, de aparecer no mapa da BBC para o mundo inteiro. Subversão de toda ordem. Santa Maria só tinha lugar central no meu mapa (do Rio Grande do Sul). A BBC não tinha esse direito. Muito menos a CNN ou a Al-Jazeera. Meu mapa acabara de virar de ponta cabeça: Santa Maria no centro do mundo.

Santa Maria no mapa múndi era a manchete, a notícia de abertura de todos os grandes jornais do mundo. Mas a notícia era a mais estarrecedora: nada de algum ato político extraordinário (com tantos políticos, de esquerda ou de direita, que se projetaram dali), nada de uma ação social de destaque, nenhuma ação da Igreja (lideranças religiosas também nasceram ali e a romaria da padroeira do Rio Grande do Sul, Nossa Senhora Medianeira, é famosa), muito menos uma ação deliberada do Exército ou da Aeronáutica brasileira (com as 19 unidades do exército e a base aérea da cidade). Um incêndio – um simples incêndio, poderia ter pensado. Uma tragédia, nunca imaginada. Falava-se então em cerca de 80 mortos, cifra que iria gradativa e assustadoramente se ampliando ao longo do dia até chegar ao inimaginável número de 231. Santa Maria entrava no mapa do mundo pela porta dos fundos – ou pelo mais fundo do abismo. 


Como sugeriram a William Bonner, ao transmitir o Jornal Nacional diretamente de Santa Maria, ninguém esperava uma ocasião desse tipo para que ele e a Rede Globo “colocassem Santa Maria no mapa”. Ninguém poderia imaginar “entrar no mapa” desse jeito. Mil vezes preferível permanecer no seu canto, na sua condição preconcebida de cidade média, de vida média, de classe média, de tranquilidade média. Tudo em Santa Maria parecia médio. Quanto mais eu aprendia a me identificar com o “purgatório da beleza e do caos” do Rio de Janeiro, mais voltava a Santa Maria como se estivesse retornando à província ou, ao chegar à casa de meu pai, no Vale do Menino Deus, como se chegasse ao campo. Ou seja, Santa Maria, entre o centro da cidade e o bairro Menino Deus, era um meio do

caminho, uma “média” entre o campo e a cidade, entre o pequeno e o grande centro, entre o desconhecido e o cotidiano. Santa Maria nunca foi pretensiosa. Contentou-se  com o setor de serviços, nunca teve grandes indústrias. Mas sempre se vangloriou de sua “primeira universidade do interior do país”. Do interior. Santa Maria é interiorana, mas seu ambiente estudantil faz dela, também, uma cidade “exteriorana”, voltada pra fora. As famílias e a vida cadenciada de classes médias zelozas, porém, também continuam ali.

Santa Maria, cidade média, é múltipla, de múltiplos territórios. Santa Maria foi ferroviária, religiosa (ainda é), é militar, estudantil, conservadora e progressista. Progresso de que, para quem? Não importa. Santa Maria agora entrou para a história do mundo, ou melhor, para a terrível história das grandes tragédias do mundo – e, pior, das grandes tragédias da irresponsabilidade humana. Da corrupção e da ganância do mundo. Santa Maria não abriu suas portas nessa madrugada de domingo. Cidade de forasteiros, aberta para tantos, Santa Maria se fechou bruscamente num cubículo nessa manhã de domingo. Santa Maria encaramujou-se, apertou-se, e vitimou uma parcela de sua maior riqueza: os jovens que forma nas suas várias instituições de ensino superior, UFSM à frente, e que, orgulhosamente, espalha pelos quatro cantos do país e países vizinhos. Discretamente. Agora não. Como num grande escândalo, a cidade explicitou o poder da  negligência, do descaso, da incompetência (de alguns, mas que agora representam e exportam a sua única grande e global imagem).


Mas e o espaço, a geografia, onde ficam? Ninguém diria que a geografia tem lugar nesta história. Mas tem, e como. Se olharmos bem, é de espaço que se fala desde o início. É de um prédio impermeabilizado que se fala. É de uma cidade transtornada, é de prédios hospitalares superlotados, é de helicópteros que levam feridos a Porto Alegre, é de um ginásio improvisado como IML e depois como capela mortuária que se trata. Espaços aqui e ali, espaços-barreiras, espaços-conexões, espaços de passagem, espaços de fixação ou repouso (alguns para sempre). No fundo, nada nesse mundo é sem espaço. O mundo é espaço. Nossas vidas são espaços, exigem espaço, preen achem espaço, fazem espaço e se fazem como espaços. Não há saída – sem espaço. E o espaço da boate não tinha saída, ou tinha uma saída minúscula, parcialmente vedada, vetada (por seguranças que precisavam fazer valer a ganância do patrão, ou por grades de ferro que  “organizavam filas” na rua). Quando falamos que o espaço da boate não tinha saída (suficiente), saídas de emergência, ou que a saída principal estava parcialmente bloqueada, estamos falando de um espaço que constitui o prédio, a materialidade que intervém na ação, na mobilidade humana, de forma decisiva. Foi por falta de espaço – como liberação, saída, e por excesso de espaço – como barreira, que a tragédia alcançou a dimensão que teve. 


Esses “espaços”, portanto, não são nada abstratos. Não são uma planta desenhada no papel. Mas já o foram um dia. Quem traçou no papel o esboço daquele espaço, quem projetou e quem demandou e aprovou aqueles traços, incluindo as repartições, as portas, as saídas, também estará envolvido para sempre nesse drama muito concreto do espaço efetivamente construído/usufruído e, hoje, sofrido, terrivelmente sofrido. O espaço é sofrido? Não, obviamente o espaço em si mesmo não é “sofrido”, mas ele é sofrido por nós, sujeitos dotados de carne e osso e que, ao tocá-lo, ao incorporá-lo, o pensamos e sentimos. Ou, falando de um modo metafórico, o próprio espaço sofre com nossos equívocos, com nossas ações unilateralmente “humanas” – quando pensamos que os espaços são todos feitos para o nosso amplo e quase exclusivo benefício. O espaço também é feito pelo próprio mundo, ele já estava aí quando chegamos. Não  temos o direito de abusar de seu uso, de despender tanta energia e não recompô-la. Desperdiçamos energia, desperdiçamos espaço, despediçamos vidas pelo mau uso – ou superuso – de nossos espaços.


A boate Kiss em Santa Maria se torna agora um modelo da má concepção e do mau uso do espaço. Nem mesmo a estrita funcionalidade, que é a prerrogativa mais elementar do espaço, foi cumprida. Equação simples: pessoas demais, saídas de menos. Para completar, um labirinto interno, a ponto de se confundir banheiros com saídas, ou de imaginar como saídas janelas que não foram feitas para abrir. Olhando agora para aquela fachada rígida, padronizada e sem janelas ficamos a imaginar quantos outros ambientes assim não se reproduzem por este Brasil e este mundo afora. E ninguém parece perceber o perigo que está do nosso lado. Será que Santa Maria, mais que um ponto mais visível no mapa, poderia se transformar também num (de mau para bom) exemplo, num paradigma contra todo esse descaso e esses abusos do indivíduo(alismo), do Estado (que não faz minimamente seu papel) e, sobretudo, do dinheiro (que deseja nada mais do que o máximo de lucro ao  menor custo possível)?
*Rogério Haesbaert (Geógrafo - Professor da Universidade Federal Fluminense - UFF). Ele é natural de Santa Maria

Fonte: geografia-ufrgs -grupo Yahoo em 14 de fevereiro.
 

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