Sâmia Teixeira
Caros amigos
É sabido que a realidade vivida nas comunidades pobres, bairros periféricos e favelas brasileiras – territórios que concentram a maioria da população de nosso país – sempre foi extremamente difícil, em particular no que tange ao acesso aos direitos sociais fundamentais: moradia, saneamento básico, transporte, saúde, educação e cultura. O que implica uma vida na berlinda com grupos de extermínio agindo livremente nas quebradas, violência policial, violência doméstica, situações de extrema pobreza, fome... A precariedade dos serviços públicos, somada ao desemprego e à instabilidade das relações de trabalho – que atingiram níveis recordes nas décadas em que o movimento Hip Hop surgiu e se consolidou –, conforma ainda hoje um problema central da sociedade brasileira. E dependendo de atuações dos governos municipais e estaduais, o problema se agrava pela forma como é encarado. Questões sociais são enfrentadas como casos de polícia. O neoliberalismo atingiu todas as classes sociais, faixas etárias, gêneros e etnias, e foram os jovens negros moradores de comunidades pobres que enfrentaram as maiores dificuldades. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), durante os anos 1990, em torno de 70% dos desempregados eram jovens de 15 a 29 anos, eafalta de oportunidades e perspectivas produziu efeitos materiais e subjetivos devastadores.
“A partir de 1989, com o neoliberalismo pulsante no mundo e no Brasil, desemprego em massa, sindicatos com dificuldades organizativas, partidos de esquerda que começavam a perder força e discurso radicalizado, a crise do mundo do trabalho e da identificação enquanto trabalhador fez com que uma geração que cresceu nos anos 1990, que estava desempregada e que não tinha no pai uma referência – o pai trabalhador –, precisou inventar outro termo que lhe desse potência e afirmação social. E esse termo é ‘periferia’”, resgata o sociólogo e músico Tiarajú Pablo D’Andrea.
Sabemos que a educação e o trabalho são elementos fundamentais para a dignidade do indivíduo, tanto para a garantia das condições de sua existência e reprodução saudável como para formar sua cidadania plena. Sem o acesso a estes pilares, a maioria dos jovens brasileiros, sobretudo os negros e pobres, tiveram suas condições e formação como cidadãos prejudicadas, sem a mínima garantia de direitos básicos. Nessa situação de tamanha falta de perspectivas e desamparo, somada à intensificação da violência policial por meio de achaques, torturas, prisões e execuções em massa, a muitos não restava alternativa ao desespero ou, em alguns casos, ao próprio recrutamento do comércio ilegal de drogas – referência de sucesso econômico para muitos jovens em comunidades marcadas pela miséria e falta de perspectivas.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ao menos cinco mortes por dia ocorrem durante intervenções policiais no país. A chance de um jovem negro ser assassinado é 3,7 vezes maior. Em 2012, 1.890 pessoas foram mortas pela ação de polícias civis e militares. Mas este número pode ainda ser maior.
“A militância dos anos 1980, seja do PT [Partido dos Trabalhadores] ou das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), não tinha ou não formulava uma identificação ou subjetivação de afirmação pessoal da favela. Foi a turma do rap que colocou em cena o termo ‘periferia’. Existia este termo, mas de compreensão geográfica. Não havia uma defesa política por meio desse conceito”, esclarece D’Andrea, que considera que a partir desta nova significação surgiu o orgulho periférico, que nada mais é que um deslizamento semântico do orgulho negro.
Isso se dá diante de um dos efeitos mais devastadores produzidos pelo racismo historicamente no Brasil, efeito que fora reforçado durante as décadas de 1980 e 1990, que é a destruição da autoestima em suas vítimas sócio-raciais. São inúmeros os relatos de jovens nascidos e criados nos bairros periféricos e favelas brasileiras a respeito da vergonha histórica sofrida por suas famílias quanto à condição socioeconômica, o “ser pobre”, quanto à origem e traços étnico-raciais, o “ser negro”, e quanto à localização geográfica, “o número do CEP”. O Hip Hop surge exatamente no gueto para subverter a invisibilidade e humilhação sócio-racial históricas, tendo na valorização da identidade negra e periférica um de seus principais pilares na construção simbólica de uma verdadeira revolução: a autoestima negra e periférica. Não se pode afirmar se havia este intento desde o princípio, mas foi o que o movimento se tornou. Em São Paulo, por exemplo, o marco político se dá quando as pessoas que frequentavam a São Bento migraram para a Praça Roosevelt.
Para além do reconhecimento do próprio valor e da atuação enquanto negro e periférico, de acordo com Carlos Eduardo Taddeo, ex-Facção Central, o conhecimento é libertador e um agente transformador fundamental para a periferia. “O rap é muito mais que música e tem um poder inacreditável. Eu sei que o livro que mudou minha vida é capaz de fazer a mudança de outros. Muitos acham que quem faz a música é quem traz a mudança, e não [é]. A música abre um caminho pra você, mas o que vai te trazer mudança é a informação que liberta sua mente. Se você é informado, não há limite, você sabe quando o sistema é arbitrário, quando está te cobrando, te matando e te aprisionando”, explica.
Isso se dá diante de um dos efeitos mais devastadores produzidos pelo racismo historicamente no Brasil, efeito que fora reforçado durante as décadas de 1980 e 1990, que é a destruição da autoestima em suas vítimas sócio-raciais. São inúmeros os relatos de jovens nascidos e criados nos bairros periféricos e favelas brasileiras a respeito da vergonha histórica sofrida por suas famílias quanto à condição socioeconômica, o “ser pobre”, quanto à origem e traços étnico-raciais, o “ser negro”, e quanto à localização geográfica, “o número do CEP”. O Hip Hop surge exatamente no gueto para subverter a invisibilidade e humilhação sócio-racial históricas, tendo na valorização da identidade negra e periférica um de seus principais pilares na construção simbólica de uma verdadeira revolução: a autoestima negra e periférica. Não se pode afirmar se havia este intento desde o princípio, mas foi o que o movimento se tornou. Em São Paulo, por exemplo, o marco político se dá quando as pessoas que frequentavam a São Bento migraram para a Praça Roosevelt.
Para além do reconhecimento do próprio valor e da atuação enquanto negro e periférico, de acordo com Carlos Eduardo Taddeo, ex-Facção Central, o conhecimento é libertador e um agente transformador fundamental para a periferia. “O rap é muito mais que música e tem um poder inacreditável. Eu sei que o livro que mudou minha vida é capaz de fazer a mudança de outros. Muitos acham que quem faz a música é quem traz a mudança, e não [é]. A música abre um caminho pra você, mas o que vai te trazer mudança é a informação que liberta sua mente. Se você é informado, não há limite, você sabe quando o sistema é arbitrário, quando está te cobrando, te matando e te aprisionando”, explica.
A força das águas
“Nós representamos, de fato, a voz da favela. Nós lutamos, vivemos e morremos por ela. Temos uma cultura que representa três formas de arte de rua, a primeira internacionalizada no mundo da arte: é o gueto unido numa só voz, numa única palavra, representando a pintura, a dança e a música, isso é o Hip Hop”, afirma Milton Sales, DJ e produtor cultural pioneiro no rap nacional, responsável entre outras coisas pela união dos amigos KL Jay e Edi Rock com os primos Ice Blue e Mano Brown para a formação do grupo Racionais MC’s.
Anos 1980, Rua 24 de Maio esquina com a Dom José Gaspar, no centro de São Paulo. Quem passou por esse local nessa época, especialmente na hora do almoço, certamente presenciou muitos jovens no estilo black power, em suas performances de breaking, que se reuniam para dançar na rua, ao som de latas, palmas,boomboxes e beatbox. Era o Hip Hop germinando em solo brasileiro.
As apresentações dos jovens, de origem pobre, dos guetos e favelas, que utilizavam as latas de lixo como instrumento percussivo, em grande parteoffice boys, negros, que trabalhavam nas lojas do centro ou em escritórios por ali, passaram a incomodar o status quo. A repressão policial fora obviamente acionada. “Foi então que o Hip Hop sentiu a necessidade de se organizar”, relembra Milton Sales. Em 1989, Miltão, que na época era também DJ, criou o MH2O, Movimento Hip Hop Organizado, numa proposta de fortalecer politicamente o movimento cultural das ruas por todo o Brasil, inspirando-se para isso em sua trajetória ativa de resistência à ditadura militar. Assim nasciam as primeiras oficinas culturais de Hip Hop, eafundação do MH2O foi comemorada num histórico show no Parque Ibirapuera, durante o aniversário da cidade de São Paulo naquele mesmo ano. O nome do movimento se deu por conta da grande quantidade de chuvas na cidade nessa época, relembra Milton, inspirando-se na força e na confluência das águas
Anos 1980, Rua 24 de Maio esquina com a Dom José Gaspar, no centro de São Paulo. Quem passou por esse local nessa época, especialmente na hora do almoço, certamente presenciou muitos jovens no estilo black power, em suas performances de breaking, que se reuniam para dançar na rua, ao som de latas, palmas,boomboxes e beatbox. Era o Hip Hop germinando em solo brasileiro.
As apresentações dos jovens, de origem pobre, dos guetos e favelas, que utilizavam as latas de lixo como instrumento percussivo, em grande parteoffice boys, negros, que trabalhavam nas lojas do centro ou em escritórios por ali, passaram a incomodar o status quo. A repressão policial fora obviamente acionada. “Foi então que o Hip Hop sentiu a necessidade de se organizar”, relembra Milton Sales. Em 1989, Miltão, que na época era também DJ, criou o MH2O, Movimento Hip Hop Organizado, numa proposta de fortalecer politicamente o movimento cultural das ruas por todo o Brasil, inspirando-se para isso em sua trajetória ativa de resistência à ditadura militar. Assim nasciam as primeiras oficinas culturais de Hip Hop, eafundação do MH2O foi comemorada num histórico show no Parque Ibirapuera, durante o aniversário da cidade de São Paulo naquele mesmo ano. O nome do movimento se deu por conta da grande quantidade de chuvas na cidade nessa época, relembra Milton, inspirando-se na força e na confluência das águas
(H²O), que não podia ser barrada facilmente. A intenção era difundir de maneira inovadora o Hip Hop para a periferia, e transmitir uma nova postura política por meio da arte. “A gente queria que as ideias se espraiassem por todo o Brasil, por isso orientamos grupos e posses por todo o país a produzirem seus próprios selos musicais, de maneira autônoma”, explica Milton, reforçando que autonomia e autoestima são ainda hoje dois dos princípios fundamentais do “verdadeiro”, como ele afirma, Hip Hop.
O MH2O passa a contribuir também para a criação de outras posses por todo o Brasil. As posses eram grupos de pessoas, militantes do Hip Hop, que passavam a se reunir e organizar encontros e oficinas culturais utilizando os elementos do Hip Hop – MC, DJ, breaking e graffiti. A formação era uma preocupação constante nas posses, porém com formatos e linguagens que se diferenciavam dos padrões clássicos de formação presentes na esquerda brasileira. As ruas eram o grande palco para este fazer artístico. Dentro de cada bairro, os jovens se organizavam e se estruturavam em festas de ruas, as chamadas block parties, em crews/posses, dando uma nova postura positiva e novos significados às juventudes nas ruas. Destacaram-se posses como a Hausa, Nação Hip Hop Brasil, Conceitos de Rua, entre tantas outras.
Nesse novo contexto, as expressões artísticas do Hip Hop e as posses substituíam a rivalidade das ruas pela realidade da arte, enfrentando o universo da falta de oportunidade e da violência, expressando-se e criando uma nova consciência política. A relação com o movimento negro e a luta contra o racismo e o genocídio negro são dois outros traços importantes das primeiras grandes posses do Hip Hop nacional – e até os dias de hoje: “Não Morra, Não Mate!”, dizia uma das campanhas encampadas pelo Movimento Negro Unificado nos anos 1980, que viria a ser musicada posteriormente no clássico “Negro Drama”, dos Racionais MC’s.
Nas oficinas do MH2O, ministradas por pessoas como Miltão ou Nelson Triunfo, foram utilizadas pick-ups, instaladas nas portas de lojas de discos no centro de São Paulo, e assim muitas pessoas conheciam as performances e práticas de scratches dos DJs e o improviso dos primeiros freestyles. Sobre bases mais elaboradas do que as batidas das latas, os garotos começavam a entoar seu canto, com letras e rimas de protesto. Não diferente dos nossos dias, elas retratavam o cotidiano de quem vive nas periferias da cidade, porém de outra perspectiva: o orgulho combativo de ser negro e periférico.
Vale ressaltar que a gestão da cidade na época era da prefeita petista Luiza Erundina, gestão que fomentou a educação por meio da cultura e que foi parceira do movimento neste seu primeiro momento. No entanto, após a gestão de Erundina, o Hip Hop passou a ser ainda mais marginalizado e segregado ao espaço periférico. Mesmo assim, o movimento não perdeu sua força, pelo contrário, através dos tempos a luta pela educação e melhores condições de vida ao povo pobre das periferias é tema pertinente ao Hip Hop em todo o Brasil, seja em espaços não formais, em casas de cultura, em seminários, debates, fóruns, letras de rap ou nos muros grafitados da cidade, verdadeiras galerias de arte a céu aberto.
“A cultura Hip Hop é um meio de fortalecer a identidade individual e as ações em grupo que a transformam em cultura de resistência e empoderamento. São quatro elementos poderosíssimos, interligados, dizendo: ‘Você pode!’ Temos que reescrever a história! Siga em frente! Corra atrás do seu sonho e viva com ele, não morra por ele. Essa é a mensagem, direta, e algumas vezes também subliminar. O empoderamento vem à medida que você se apodera dessa cartilha”, resume o rapper Genival Oliveira Gonçalves, conhecido como GOG, pioneiro na cena do Hip Hop em Brasília e no Distrito Federal. “O Hip Hop se aproxima da proposta de educação multicultural que não prioriza a apropriação dos conteúdos de saber universal em si mesmo, mas o processo do conhecimento e suas finalidades”, sintetiza o educador Moacir Gadotti.
Historicamente, o movimento Hip Hop esteve a maior parte de sua vida ligado ao movimento social e às reivindicações do povo perifé-rico de forma geral – na luta para proteger os que já nascem condenados à crueldade de um sistema no qual a violência contra a juventude
O MH2O passa a contribuir também para a criação de outras posses por todo o Brasil. As posses eram grupos de pessoas, militantes do Hip Hop, que passavam a se reunir e organizar encontros e oficinas culturais utilizando os elementos do Hip Hop – MC, DJ, breaking e graffiti. A formação era uma preocupação constante nas posses, porém com formatos e linguagens que se diferenciavam dos padrões clássicos de formação presentes na esquerda brasileira. As ruas eram o grande palco para este fazer artístico. Dentro de cada bairro, os jovens se organizavam e se estruturavam em festas de ruas, as chamadas block parties, em crews/posses, dando uma nova postura positiva e novos significados às juventudes nas ruas. Destacaram-se posses como a Hausa, Nação Hip Hop Brasil, Conceitos de Rua, entre tantas outras.
Nesse novo contexto, as expressões artísticas do Hip Hop e as posses substituíam a rivalidade das ruas pela realidade da arte, enfrentando o universo da falta de oportunidade e da violência, expressando-se e criando uma nova consciência política. A relação com o movimento negro e a luta contra o racismo e o genocídio negro são dois outros traços importantes das primeiras grandes posses do Hip Hop nacional – e até os dias de hoje: “Não Morra, Não Mate!”, dizia uma das campanhas encampadas pelo Movimento Negro Unificado nos anos 1980, que viria a ser musicada posteriormente no clássico “Negro Drama”, dos Racionais MC’s.
Nas oficinas do MH2O, ministradas por pessoas como Miltão ou Nelson Triunfo, foram utilizadas pick-ups, instaladas nas portas de lojas de discos no centro de São Paulo, e assim muitas pessoas conheciam as performances e práticas de scratches dos DJs e o improviso dos primeiros freestyles. Sobre bases mais elaboradas do que as batidas das latas, os garotos começavam a entoar seu canto, com letras e rimas de protesto. Não diferente dos nossos dias, elas retratavam o cotidiano de quem vive nas periferias da cidade, porém de outra perspectiva: o orgulho combativo de ser negro e periférico.
Vale ressaltar que a gestão da cidade na época era da prefeita petista Luiza Erundina, gestão que fomentou a educação por meio da cultura e que foi parceira do movimento neste seu primeiro momento. No entanto, após a gestão de Erundina, o Hip Hop passou a ser ainda mais marginalizado e segregado ao espaço periférico. Mesmo assim, o movimento não perdeu sua força, pelo contrário, através dos tempos a luta pela educação e melhores condições de vida ao povo pobre das periferias é tema pertinente ao Hip Hop em todo o Brasil, seja em espaços não formais, em casas de cultura, em seminários, debates, fóruns, letras de rap ou nos muros grafitados da cidade, verdadeiras galerias de arte a céu aberto.
“A cultura Hip Hop é um meio de fortalecer a identidade individual e as ações em grupo que a transformam em cultura de resistência e empoderamento. São quatro elementos poderosíssimos, interligados, dizendo: ‘Você pode!’ Temos que reescrever a história! Siga em frente! Corra atrás do seu sonho e viva com ele, não morra por ele. Essa é a mensagem, direta, e algumas vezes também subliminar. O empoderamento vem à medida que você se apodera dessa cartilha”, resume o rapper Genival Oliveira Gonçalves, conhecido como GOG, pioneiro na cena do Hip Hop em Brasília e no Distrito Federal. “O Hip Hop se aproxima da proposta de educação multicultural que não prioriza a apropriação dos conteúdos de saber universal em si mesmo, mas o processo do conhecimento e suas finalidades”, sintetiza o educador Moacir Gadotti.
Historicamente, o movimento Hip Hop esteve a maior parte de sua vida ligado ao movimento social e às reivindicações do povo perifé-rico de forma geral – na luta para proteger os que já nascem condenados à crueldade de um sistema no qual a violência contra a juventude
pobre, negra e periférica é flagrante.Eofaz por meio de uma poderosa arma: a cultura. “Nós, do movimento Mães de Maio, caminhamos lado a lado com o funk e o rap, pois sabemos que esses meninos vivem a mesma realidade que nós e sentem na pele o genocídio contra a juventude pobre, negra e periférica”, acentua Débora Maria da Silva, coordenadora do movimento Mães de Maio – que reúne mães e familiares de vítimas da violência policial de todo o país. “Um exemplo concreto desta nossa união com nosso exército de filhos se deu na luta por justiça em relação à matança de MCs [de funk] na Baixada Santista ao longo dos anos 2011 a 2013: em menos de três anos foram seis MCs assassinados, e nós lutamos lado a lado com o movimento Hip Hop da Baixada exigindo o fim do extermínio e a justiça em relação aos casos, que até hoje seguem sem mais esclarecimentos”, resgata Débora.
Em O Livro Vermelho do Hip Hop, de 1997 – um dos primeiros estudos sobre o tema –, de Spensy Pimentel, Thaíde dá seu depoimento sobre essa transformação para maior engajamento do Hip Hop, noutro momento histórico: “Na época [anos 1980] a gente já percebia muito bem a gravidade de problemas como a violência policial contra os jovens da periferia. Mas as pessoas costumavam dizer que a gente só queria polemizar, que estávamos exagerando... Talvez, se tivessem nos dado ouvidos, a situação não estivesse tão grave hoje. Eu lembro que às vezes íamos cantar em certas casas onde o segurança era também PM e, pelo que parecia, justiceiro nas horas vagas. Eles ouviam ‘Homens da Lei’ e depois vinham ameaçar a gente no camarim: ‘Vocês estão fazendo sucesso à custa da desgraça de outras pessoas.’ Eu respondia: ‘E vocês, que sobrevivem à custa da violência?’ A barra sempre foi pesada”, recorda Thaíde.
O termo “periferia” só ganhou outro significado e potência porque, para isso, o morador deste espaço geográfico também sofreu transformações conforme a vivência social e o contexto histórico. Para D’Andrea, no argumento que desenvolve em sua tese de Sociologia, defendida na Universidade de São Paulo (USP), podemos chamar esta pessoa de “sujeito periférico”.
“No âmbito da produção artística, neste período, o discurso que o rap começa a proferir, os Racionais, e não só, DMN, Facção Central, eles tinham uma chamada ética regulatória. E o que é esta ética? São conselhos que se dá para uma população de como viver um determinado momento em que a gente tá ‘sobrevivendo no inferno’, parafraseando o disco dos Racionais de 1997”, resgata o sociólogo.
E foi neste momento de refluxo dos movimentos sociais, de abandono dos partidos políticos, de desemprego, forte ideologia neoliberal, que o orgulho negro passou a ser também orgulho periférico, que surge este sujeito que luta pelo espaço onde vive e que assume discurso crítico e politizado sobre o mundo e as questões da favela.
“O maior ganho, numa leitura marxista, é que um morador da periferia, quando produz um produto cultural, identifica-se com o fruto de seu trabalho. É irreversivelmente um ganho. É mais possível uma identificação acontecer neste caso do que trabalhando no fast-food, porque a pessoa não consegue se identificar com o hambúrguer”, ironiza D’Andrea.
Em O Livro Vermelho do Hip Hop, de 1997 – um dos primeiros estudos sobre o tema –, de Spensy Pimentel, Thaíde dá seu depoimento sobre essa transformação para maior engajamento do Hip Hop, noutro momento histórico: “Na época [anos 1980] a gente já percebia muito bem a gravidade de problemas como a violência policial contra os jovens da periferia. Mas as pessoas costumavam dizer que a gente só queria polemizar, que estávamos exagerando... Talvez, se tivessem nos dado ouvidos, a situação não estivesse tão grave hoje. Eu lembro que às vezes íamos cantar em certas casas onde o segurança era também PM e, pelo que parecia, justiceiro nas horas vagas. Eles ouviam ‘Homens da Lei’ e depois vinham ameaçar a gente no camarim: ‘Vocês estão fazendo sucesso à custa da desgraça de outras pessoas.’ Eu respondia: ‘E vocês, que sobrevivem à custa da violência?’ A barra sempre foi pesada”, recorda Thaíde.
O termo “periferia” só ganhou outro significado e potência porque, para isso, o morador deste espaço geográfico também sofreu transformações conforme a vivência social e o contexto histórico. Para D’Andrea, no argumento que desenvolve em sua tese de Sociologia, defendida na Universidade de São Paulo (USP), podemos chamar esta pessoa de “sujeito periférico”.
“No âmbito da produção artística, neste período, o discurso que o rap começa a proferir, os Racionais, e não só, DMN, Facção Central, eles tinham uma chamada ética regulatória. E o que é esta ética? São conselhos que se dá para uma população de como viver um determinado momento em que a gente tá ‘sobrevivendo no inferno’, parafraseando o disco dos Racionais de 1997”, resgata o sociólogo.
E foi neste momento de refluxo dos movimentos sociais, de abandono dos partidos políticos, de desemprego, forte ideologia neoliberal, que o orgulho negro passou a ser também orgulho periférico, que surge este sujeito que luta pelo espaço onde vive e que assume discurso crítico e politizado sobre o mundo e as questões da favela.
“O maior ganho, numa leitura marxista, é que um morador da periferia, quando produz um produto cultural, identifica-se com o fruto de seu trabalho. É irreversivelmente um ganho. É mais possível uma identificação acontecer neste caso do que trabalhando no fast-food, porque a pessoa não consegue se identificar com o hambúrguer”, ironiza D’Andrea.
Os produtos da criação crítica da periferia
Débora Maria recorda os dois livros produzidos pelo movimento Mães de Maio em conjunto com uma série de rappers e poetas periféricos: “Nossos dois primeiros livros – Do Luto à Luta, de 2011, e Mães de Maio, Mães do Cárcere: a periferia grita, de 2013 – foram trabalhos feitos em conjunto com poetas periféricos e com a participação ativa de muitos rappers. Artistas militantes que formaram o grito periférico presente em nossos livros junto com o grito das mães e familiares de vítimas do genocídio: é um misto de orgulho de ser periférico com a revolta por mais de 500 anos de terrorismo do Estado contra os pobres e negros”, reconstrói a ativista, reforçando que o lema “Nóis por Nóis” é uma ideia forte comum entre o movimento Hip Hop e o movimento de familiares de vítimas. “Temos que ter soberania e autonomia para falar e agir por nós mesmos”, ressalta Débora
Com o passar dos anos, são notórias as diversas iniciativas que vão ao encontro desta revolução cultural, transformando-a, sobretudo no plano da cultura. Em diversos pontos da periferia de São Paulo, e atualmente pelo Brasil afora, proliferam-se grupos de artistas que organizam saraus de poesias, que trabalham com teatro, graffiti, que passam a dominar diversas técnicas audiovisuais, a criar suas animações, seus documentários, suas ficções etc. Dessa maneira, valem-se de várias linguagens artísticas desde a periferia – e a partir da identidade periférica – como meio de compreender a realidade e se articularem para, conscientemente, intervir nela no sentido da construção de uma sociedade mais justa e uma vida mais digna. Afastada histórica, geográfica e materialmente do centro da cidade, superando as tais distâncias da dominação aliadas à falta de estrutura, isso tudo costumava ser obstáculo quase intransponível para o acesso aos bens culturais e artísticos.
Este cenário, nos últimos anos, tem começado a se transformar a partir da própria superação dos obstáculos, das dificuldades colocadas também no caminho destas novas gerações. Neste sentido, o movimento Hip Hop, sobretudo em seu início (fim dos anos 1980), cumpriu um papel fundamental no resgate da autoestima, da consciência crítica e da constituição de espaços culturais e formativos nas periferias das grandes cidades do país. De certa maneira, toda a chamada “cultura periférica” e “literatura periférica” atuais, crescentes e efervescentes na
Este cenário, nos últimos anos, tem começado a se transformar a partir da própria superação dos obstáculos, das dificuldades colocadas também no caminho destas novas gerações. Neste sentido, o movimento Hip Hop, sobretudo em seu início (fim dos anos 1980), cumpriu um papel fundamental no resgate da autoestima, da consciência crítica e da constituição de espaços culturais e formativos nas periferias das grandes cidades do país. De certa maneira, toda a chamada “cultura periférica” e “literatura periférica” atuais, crescentes e efervescentes na
última década em todo o país, são em grande medida tributária (no melhor sentido do termo) deste processo social e cultural desencadeado pelos primeiros grupos artísticos de jovens pobres, em sua maioria negros, envolvidos no movimento Hip Hop.
“Na falta de políticas públicas para a produção cultural ou de aparelhos de lazer e espaços criativos nas periferias, o Hip Hop pôde ressignificar a identidade do jovem como pobre e negro. Pôde estimular a reflexão do jovem envolvido no Hip Hop sobre qual é o seu lugar social, como porta-voz da periferia. O Hip Hop vem fazendo esse papel há décadas”, analisa GOG. Em sua opinião, “os sensores estatais, midiáticos e empresariais demoraram a detectar isso, sobretudo em nosso melhor tempo... E, quando chegaram, trouxeram suas utopias, na tentativa de nos contradizer, nos tornar parte do lucro deles.” Para GOG, o Hip Hop estaria passando por um grande dilema nos dias atuais: “O nosso divã traz a reflexão: como avançar diante deste quebra-cabeça social? O Estado governa, ele não é o poder, o poder não muda, é um cofre muito protegido por pactos. Temos errado e acertado, mas o caminho que eu acho mais promissor é o de volta pra casa. Todo centro é poluído e com o tempo fica inabitável”, filosofa, um tanto enigmático.
“Na falta de políticas públicas para a produção cultural ou de aparelhos de lazer e espaços criativos nas periferias, o Hip Hop pôde ressignificar a identidade do jovem como pobre e negro. Pôde estimular a reflexão do jovem envolvido no Hip Hop sobre qual é o seu lugar social, como porta-voz da periferia. O Hip Hop vem fazendo esse papel há décadas”, analisa GOG. Em sua opinião, “os sensores estatais, midiáticos e empresariais demoraram a detectar isso, sobretudo em nosso melhor tempo... E, quando chegaram, trouxeram suas utopias, na tentativa de nos contradizer, nos tornar parte do lucro deles.” Para GOG, o Hip Hop estaria passando por um grande dilema nos dias atuais: “O nosso divã traz a reflexão: como avançar diante deste quebra-cabeça social? O Estado governa, ele não é o poder, o poder não muda, é um cofre muito protegido por pactos. Temos errado e acertado, mas o caminho que eu acho mais promissor é o de volta pra casa. Todo centro é poluído e com o tempo fica inabitável”, filosofa, um tanto enigmático.
Rap, linguagem libertadora
“Acho que o rap alcança a periferia como um todo a partir de 1993, com o discoRaio X Brasil , dos Racionais MC’s, que a meu ver foi uma obra fundamental para o rap e para a produção musical no Brasil, porque, para além deste nicho, foi a última expressão musical brasileira inteligente e politizada que teve forte reverberação. A gente não pode dizer que não teve outras produções inteligentes, mas nenhuma, neste período histórico, teve a mesma abrangência do Raio X até o Sobrevivendo no Inferno. Depois os Racionais começam a ter outra leitura das coisas, sem deixar de ser radical, mas com outro posicionamento”, ressalta Tiarajú D’Andrea.
Pra exemplificar o que os Racionais MC’s fizeram e qual sua caminhada conforme o contexto histórico e político, D’Andrea remonta sua própria trajetória e conta que sua família sempre militou no PT, embora tenha abandonado o partido com os anos, e relembra suas vivências em atividades políticas nas chamadas CEBs e a linguagem utilizada e posteriormente apropriada pelo movimento Hip Hop. “Nestes espaços, me lembro de que existia toda uma gramática, uma leitura crítica do mundo, influenciada pela Igreja Católica de esquerda e sua crítica ao capitalismo, e um tom da prática sindical, que colocava a situação no binômio trabalhador-patrão. Então, você tinha estas duas vertentes de entendimento da questão social e da crítica social por parte ou para aqueles que habitavam os bairros populares. O que o rap vem a acrescentar nos anos 1990, e o que foi um choque para minha geração, é que ele começa a falar dessas mesmas coisas de outra maneira”, explica.
Com este mesmo discurso, Carlos Eduardo Taddeo realiza palestras nas periferias para estimular que a revolução expressa nas letras seja colocada em prática verdadeiramente e explica a função da rima para a conscientização política na periferia. “O rap assumiu um papel importante neste processo. Ele conseguiu inserir não só personagens históricos, porque até então você não veria ninguém com uma camiseta do Malcolm X, Martin Luther King ou Gandhi, então o rap conseguiu este progresso, e com isso fez com que o povo tivesse uma orientação”, retoma o rapper, complementando que isso não basta e que é necessário “ir além e respirar política com crítica”.
“Eu vejo muito moleque que troca a liberdade por causa de uns óculos. Precisamos de uma cultura de pacificação entre nós. Uma cultura longe da ostentação. Ele acaba se iludindo, sendo arrastado pelo crime, acaba se matando. Não adianta esperar a benevolência do opressor, porque a nossa tragédia é o que põe dinheiro no bolso deles. Igualdade social significa um carro a menos na garagem do opressor, uma mansão a menos, uma empresa a menos, um lucro de final de ano a menos. Precisamos trocar ideia e precisamos de união. Não teórica, mas na prática”, afirma o rapper
Pra exemplificar o que os Racionais MC’s fizeram e qual sua caminhada conforme o contexto histórico e político, D’Andrea remonta sua própria trajetória e conta que sua família sempre militou no PT, embora tenha abandonado o partido com os anos, e relembra suas vivências em atividades políticas nas chamadas CEBs e a linguagem utilizada e posteriormente apropriada pelo movimento Hip Hop. “Nestes espaços, me lembro de que existia toda uma gramática, uma leitura crítica do mundo, influenciada pela Igreja Católica de esquerda e sua crítica ao capitalismo, e um tom da prática sindical, que colocava a situação no binômio trabalhador-patrão. Então, você tinha estas duas vertentes de entendimento da questão social e da crítica social por parte ou para aqueles que habitavam os bairros populares. O que o rap vem a acrescentar nos anos 1990, e o que foi um choque para minha geração, é que ele começa a falar dessas mesmas coisas de outra maneira”, explica.
Com este mesmo discurso, Carlos Eduardo Taddeo realiza palestras nas periferias para estimular que a revolução expressa nas letras seja colocada em prática verdadeiramente e explica a função da rima para a conscientização política na periferia. “O rap assumiu um papel importante neste processo. Ele conseguiu inserir não só personagens históricos, porque até então você não veria ninguém com uma camiseta do Malcolm X, Martin Luther King ou Gandhi, então o rap conseguiu este progresso, e com isso fez com que o povo tivesse uma orientação”, retoma o rapper, complementando que isso não basta e que é necessário “ir além e respirar política com crítica”.
“Eu vejo muito moleque que troca a liberdade por causa de uns óculos. Precisamos de uma cultura de pacificação entre nós. Uma cultura longe da ostentação. Ele acaba se iludindo, sendo arrastado pelo crime, acaba se matando. Não adianta esperar a benevolência do opressor, porque a nossa tragédia é o que põe dinheiro no bolso deles. Igualdade social significa um carro a menos na garagem do opressor, uma mansão a menos, uma empresa a menos, um lucro de final de ano a menos. Precisamos trocar ideia e precisamos de união. Não teórica, mas na prática”, afirma o rapper
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